ATENÇÃO



A T E N Ç Ã O

As informações deste blog não foram escritas por um médico e não substituem o diagnóstico, acompanhamento e tratamento da doença falciforme. Não pratique a auto-medicação. CONSULTE SEMPRE O MÉDICO HEMATOLOGISTA!



quarta-feira, março 30, 2005

Meu depoimento

Minha mãe tinha 35 anos quando se viu parada na frente do Hospital das Clinicas de São Paulo, carregando duas crianças desenganadas, que não completariam a sua primeira década de vida, segundo a médica que lhe atendeu.
Uma das crianças era eu, a autora desse blog, que tem hoje 33 anos e um filho de 11. A outra era meu irmão, Luciano, hoje casado e com 30 anos.
Naquela época, quando se falava de anemia falciforme e talassemia (ainda mais as duas juntas), era quase como assinar um atestado de óbito antecipado. Para completar a situação, minha mãe tinha acabado de se aposentar por invalidez (por causa de um erro médico que lhe tirou a visão do olho esquerdo) e saía de um casamento de 4 anos que não havia dado certo.
A única instrução que a médica deu à minha mãe foi: “Mude-se para um lugar quente e dê os melhores anos que essas crianças possam ter.”
Ela enlouqueceu. Vendeu tudo o que tinha, e juntou a cara e a coragem e fomos todos para o interior. Foi assim que fomos parar em Jaú, terra dos meus avós maternos, de tios e primos distantes. No dia da mudança, a minha mãe decidiu que iria jogar o carro embaixo do primeiro treminhão (aqueles caminhões enormes que carregam cana) e matar nós três. Um anjo disfarçado de guarda rodoviário a parou antes e a escoltou (literalmente) até a cidade.
Ela não desistiu e correu atrás de todas as simpatias, promessas, esperança, benzeduras, terreiros, igrejas, enfim, qualquer coisa que diziam para ela fazer, ela fazia. Nós tomamos sangue de boi fresco, em jejum. Tomamos mentruz batido com leite, chá de picão e tantas outras coisas que eu nem me lembro mais.
Ainda assim, ela procurou os melhores centros especializados, em Campinas, em Ribeirão Preto, e lá fizemos todos os tratamentos disponíveis.
Em Ribeirão ficamos muitos anos sendo acompanhados pelo Dr. Marco Antonio Zago e sua equipe, depois pela Dra. Sarah e sua equipe, e também pelos hematologistas do convênio (sim, além do acompanhamento no HC de Ribeirão a gente ainda ia ao particular....) os Drs. Sebastião Ismael e José Bernardes.
Nós todos aprendemos muito, a minha mãe sempre fez questão que nós soubéssemos o que tínhamos e porque era feito isso ou aquilo.
E nós fomos crescendo. Tenho certeza que na cabeça da minha mãe, cada aniversário era uma grande conquista.
É claro que tivemos os nossos problemas, claro que tomamos vários sustos, como quando meu irmão foi operado para retirar o baço e sofreu uma parada cardio-respiratória, mas a gente sabia que a luta era dura, mas não impossível. As crises foram superadas, algumas demoraram mais, outras menos.
Enquanto a gente podia ficar debaixo das asas dela, ficamos. Mas um dia, nos tornamos adultos, e partimos para vôo solo. Meu irmão viajou para o exterior, foi fazer um tratamento experimental lá em Boston-MA, viajou de férias para Londres, casou. Dirige, joga bola (quer dizer, tenta....), namorou, trabalha. Bebe sua cervejinha de vez em quando, sai com os amigos....
Eu também fiz tudo que uma pessoa normal faz: trabalho, estudei, tive um filho lindo e saudável, casei com uma pessoa especial que me ajuda e me compreende, cuido da casa, faço faxina, viajo, bebo minha cerveja, enfim...
Nós nunca fomos tratados como especiais. Sempre foi muito claro pra nós que nós tínhamos limitações, sim, mas poderíamos fazer de tudo. Pra nós sempre foi muito certo que somos inteligentes, podemos produzir, trabalhar, estudar, amar.
Já tivemos casos de preconceito sim, alguns patrões que tivemos já nos disseram que nós provocávamos as crises, e que gostávamos de ficar doentes. Mas a gente não pode julgar a maioria por uns. Infelizmente (ou felizmente) as pessoas não sabem como é que acontece, como é a nossa dor, e que não somos nós que controlamos isso.
Muitas vezes as pessoas me perguntam como evitar as crises. Eu digo, não tem como. Vai acontecer, e quem é portador de AF sabe disso. Você pode estar assistindo televisão, num dia quente, super hidratado e tal, descansado e ter uma crise. Ou pode ir ao auge do esforço físico, do desgaste emocional e não ter nada.
O que pode ser feito é tentar evitar os fatores que desencadeiam as crises, como stress, desidratação, etc. Tentar não colaborar para que aconteça. Mas isso também não garante.
A internet me trouxe amigos virtuais, portadores de AF, com quem eu converso no MSN ou no Orkut, que trocam experiências comigo. Eu conheci uma moça que ela e o irmão tem AF e estão super bem, graças a Deus, e o irmão se trata com hydrea e tem 40 anos...
Hoje temos tantos médicos bons, tantos centros especializados, e temos acesso a muito mais informação do que há trinta anos atrás.
Essa troca de experiências é importante.
Mas ainda é muito difícil pra quem tem AF falar sobre isso. A gente vivia sobre a sombra do medo, de ficar doente na escola, de ficar doente na frente do namorado(a), de ficar doente na balada, dos outros acharem que a gente tem defeito, ou que a gente vai passar a doença, como se fosse catapora.
A gente vivia com medo de morrer jovem, de não poder ter filhos, não poder constituir família e de ser um encosto na vida dos pais, ser eternos dependentes.
E hoje a gente sabe que não é mais assim. Que bom, que bom!!!

terça-feira, março 15, 2005

Dois avisos

1. Todos os textos publicados neste blog, apesar de escritos muitas vezes com as minhas palavras, são baseados em manuais do Hemorio, do Ministério da Saúde, do Hemocentro de São Paulo, de textos da USP, Unesp, etc.
Como os textos foram modificados em sua grande maioria, não coloquei a fonte, então agora me redimo. De qualquer forma, os links ai ao lado são as minhas fontes de pesquisa.
2. Eu não sou médica, e a internet não é consultório médico. Portanto, é sempre imprescindível ter um bom médico hematologista para fazer o acompanhamento de um portador de AF. Você tem dúvidas quanto ao tratamento? Pergunte sempre ao seu médico, questione, mas siga sempre as orientações dele, nunca se auto-medique. Isso é muito importante. Aprender, trocar experiências, ler, é muito bom, faz você ficar mais consciente, mas NÃO SUBSTITUI O MÉDICO.

Obrigado

segunda-feira, março 14, 2005

5 perguntas sobre AF

1. Como se faz o diagnóstico da Anemia Falciforme?
Um exame simples de sangue, como o hemograma, pode já indicar a presença de hemácias falciformes e hemoglobina baixa. A partir desse exame, o médico normalmente solicita outros, como a eletroforese de hemoglobina e o teste de falcemia, para confirmação do diagnóstico.

2. Quais são os principais sintomas do portador de Anemia Falciforme?
Os principais sintomas da AF são apresentados ainda na infância, as crianças normalmente são pálidas ou ictéricas (amarelas), costumam relatar um ou mais sintomas como: cansaço, fraqueza, dores (nas articulações, ossos, torácicas, abdominais, em membros superiores e inferiores) de maior ou menor intensidade. Podem ainda apresentar infecções de repetição (respiratórias, urinárias, etc), edema (inchaço) nas mãos e nos pés e úlceras (feridas) nas pernas.
Todos os sintomas podem apresentar-se de maneira diferente em cada indivíduo. Alguns apresentam sintomas leves, outros de maior intensidade.

3. Existe cura para Anemia Falciforme?
Não. Ainda não foi descoberta nenhuma cura para AF, apesar de muitos cientistas estarem realizando pesquisas de terapias gênicas, células troncos e transplantes de medula óssea. Apesar disso, a AF tem controle. Por isso são tão importantes o diagnóstico precoce e o constante acompanhamento médico com o hematologista.

4. Quais os principais cuidados que o portador de AF tem que ter?Os portadores devem lembrar que estão expostos a um regime de anemia crônica. Dessa forma, precisam manter uma alimentação equilibrada e ingerir muito líquido.
É conveniente fazer repouso moderado e não se exceder nos exercícios físicos, pois o excesso de exercícios pode levar a crise dolorosa.
É importante ainda agasalhar-se durante o frio e usar roupas leves no calor, evitando mudanças bruscas de temperatura. Também é importante proteger as pernas e os pés para evitar os machucados.


5. Existem alimentos que o portador de AF deve evitar?
A alimentação, como já foi dito, deve ser equilibrada. Deve-se consumir pães, margarina, leite e derivados (queijo, iogurte, manteiga, etc.), açucares (doces), leguminosas (feijão, grão de bico, lentilha, ervilha, etc), carnes (boi, frango, peixe, etc.), legumes, verduras, frutas e óleos.
Devemos lembrar que por causa da hemólise das células falciformes, o portador de AF tem estoque elevado de ferro no organismo. Assim sendo, devem ser evitados os alimentos ricos em ferro, tais como: carnes vermelhas, principalmente vísceras (fígado, língua, rins, coração), animais marinhos com conchas, frutas secas, folha verde escuras (couve, espinafre, brócolis, agrião, rúcula), feijão, ervilhas, lentilha, ovos, melaço, pães e alimentos enriquecidos com ferro. Esses alimentos não são proibidos, devendo ser consumidos com moderação.
É importante ingerir grande quantidade de líquidos para evitar a desidratação. O chá mate, chá preto e chá verde dificultam a absorção do ferro pelo organismo, podendo ser consumidos em abundância.
Dietas específicas devem ser adotadas somente com recomendação e orientação médica.

quinta-feira, março 10, 2005

A herança

Todas as nossas células guardam em seu núcleo o material genético que é responsável pelas características que você possui.
É no DNA que está codificado, por exemplo, a cor da sua pele, a sua estatura, a cor dos seus olhos e de seus cabelos e assim por diante.
É também no DNA que estão as informações sobre sua saúde, dados estes que foram herdados dos seus pais, avós, bisavós, etc.
Mas o que é DNA?
A sigla DNA quer dizer: ácido desoxirribonucléico. O DNA é um longo filamento em forma de dupla hélice formado por nucleotídeos complementares ligados por pontes de hidrogênio. Ficou difícil de entender? Basta dizer que o DNA é um grande quebra cabeça onde cada peça tem o seu lugar e sua função na montagem da figura toda. Se uma peça for trocada de lugar a figura pode ficar torta, ou, dependendo da gravidade do erro, pode desconfigurar o todo por completo.
Esses “erros” na seqüência do DNA é que são responsáveis por algumas das doenças hereditárias. Doenças estas que são transmitidas geração após geração.
As células sexuais, o espermatozóide e o óvulo carregam no seu DNA, metade das informações que outras células do corpo carregam.
É por isso que quando um bebê nasce, ele traz uma mistura das características da mãe e do pai.
Uma das características que herdamos de nossos pais é uma proteína do sangue chamada hemoglobina. A hemoglobina é responsável pela cor vermelha do sangue e também pelo transporte de oxigênio para os órgãos e tecidos.
Todos nós recebemos de nossos pais um gene responsável pela síntese de hemoglobina.
A hemoglobina normal é chamada A e os indivíduos normais são chamados AA, pois recebem uma parte do pai e outra da mãe.
Na AF a hemoglobina é anormal e chamada de S. Quando a pessoa recebe de um dos pais um gene normal (A) e outro da falciforme (S) é chamado de traço falciforme (AS). O portador de traço não é doente.
Se a pessoa recebe de ambos os pais o gene da hemoglobina anormal (S) é chamado de homozigoto (SS) e é portador de Anemia Falciforme.
Existe ainda a possibilidade da pessoa herdar um gene da hemoglobina falciforme (S) e outro com algum tipo de hemoglobina anormal (C,D ou talassemia). Nesse caso todas as doenças onde a hemoglobina S aparece associada à outra hemoglobina anormal é chamada de Doença Falciforme.
A hemoglobina S faz com que a hemácia, que é a célula vermelha do sangue falcize, isso é, ela se modifica sucessivas vezes quando passa pelo pulmão para fazer o transporte de oxigênio, até que se torna uma meia lua ou a forma de uma foice. É daí que vem o nome de FALCIFORME (em forma de foice).
Por causa dessa alteração a hemácia vive menos. A célula sanguínea normal vive aproximadamente 120 dias. A S atinge no máximo a metade dessa vida útil, chegando às vezes a viver somente 15 dias.
Por causa desse afoiçamento, ocorre uma dificuldade na passagem do sangue pelos vasos sanguíneos mais finos, bloqueando o fluxo sanguíneo para tecidos e órgãos do corpo. Além disso, há menor oferta de oxigênio.
Esse bloqueio é o que causa a crise álgica (crises de dor), dependendo ainda do local ou órgão afetado podem ocorrer derrames.
Diferentes situações podem levar a hemácia com hemoglobina S a se falcizar (adquirir a forma de foice) com maior rapidez: Infecções, febres, desidratação, exposição a altas variações climáticas, stress, fortes emoções, diminuição da oxigenação do sangue, esforço físico, ingestão exagerada de bebidas alcoólicas, etc.

Editorial

Escrever sobre Anemia Falciforme não é uma tarefa fácil. Primeiro porque a Anemia Falciforme (AF) é uma doença genética e isso envolve DNA, mutações, pouca pesquisa e quase nenhuma divulgação.
Segundo porque sempre houve uma estigmatização em torno do fato da doença estar muito mais presente em pessoas negras.
A AF tem que ser muito bem abordada como questão de saúde pública, de interesse não só da população negra ou parda, mas de todos nós, sejamos brancos, negros ou mestiços.
Sabe-se bem que o nosso país é um dos maiores berços da miscigenação. É por esse motivo que, principalmente no Brasil, não se pode simplificar e denominar a AF como doença unicamente encontrada na raça negra.
A AF é conhecida há mais de cinquenta anos. Há trinta, os primeiros programas de mapeamento genético das células falciformes foram instituídos nos EUA.
Muito ainda precisa ser feito para a divulgação da AF, das políticas de diagnóstico às formas de tratamento.
Poucas são as associações de portadores ativas, poucas são as ações efetivas.
Para se ter uma idéia do quão pouco a AF é discutida, na Veja, a revista semanal de maior circulação no Brasil, no período de 1997 a 2005 apenas 3 vezes as palavras "anemia falciforme" foram mencionadas.
A primeira foi feita numa matéria ampla, porém inespecífica, sobre terapia gênica.
A segunda foi uma nota de 3 linhas sobre um dos exames que foi incluído no teste do pezinho realizado obrigatoriamente em todos os recém-nascidos, que é responsável pelo diagnóstico da AF, a eletroforese de hemoglobina.
E a terceira era a resenha de um livro sobre sobreviventes de acidentes, onde um dos personagens era portador de AF.
É pouco se levarmos em consideração que uma em cada 130 pessoas tem anemia falciforme, 10% da população negra/parda e 2% da população geral do país é portadora de traço falciforme.
Na Bahia o número chega a 5,5% da população geral.
O melhor caminho ainda é a informação.
É necessário o diagnóstico precoce para que o portador faça acompanhamento médico constante e a família receba orientação sobre o risco reprodutivo.
Isso envolve aconselhamento genético, psicológico e acima de tudo bioético.
Não basta somente dizer ao portador de traço que ele não deve ter filhos. Ele precisa ser orientado, esclarecido e sempre deve ser preservada a decisão única e soberana do indíviduo sobre os riscos a serem assumidos quando da decisão da reprodução.
Foi por causa de todos esses argumentos que eu resolvi, como portadora de AF, usar a ferramenta mais poderosa de divulgação que temos disponível hoje, que é a internet, para falar sobre a doença.
A intenção não é só apresentar a AF usando termos médicos e leigos, mas divulgar. Apresentar casos de pacientes, experiências de vida dos portadores, casos de preconceito, de exclusão, de dor, mas acima de tudo, de vitória e de luta.
Nós somos muitos, portadores de AF e traço. Precisamos nos unir para aprender, ensinar e alertar.
Sejam bem vindos!